Amigos Conquistados

terça-feira, 23 de junho de 2009

Perfil leitor

PERFIL LEITOR

Sempre fui uma leitora daquelas que lê qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. Chega a ser um vício. Quando eu tinha nove anos li meu primeiro livro. Foi encantamento à primeira vista. O livro foi “Cem noites tapuias” da coleção Vaga-Lume. Minha mãe não entendia como eu podia ler tanto. Eu chegava da escola sempre com um livro na mão, deitava em uma rede e só levantava de lá sob os protestos de minha mãe. Ela dizia que eu vivia no mundo da lua. E vivia mesmo. Eu lembro que fazia o dever de casa lá na escola, pra não perder tempo.

Quando mudei de uma escola municipal para o Colégio, na quarta série, continuei minha viagem pela Literatura. Nessa época descobri as histórias em quadrinhos. As que chegavam a minhas mãos eram sempre dos heróis da Marvel. Não sei direito como eu conseguia os livros porque meus pais não tinham condições nenhuma de comprar livros nem para mim e nem para os meus irmãos. Era um sacrifício muito grande munir a gente com canetas, lápis, cadernos e uniformes, imagina um luxo como livros. Esses livros só podiam ser emprestados. Lembro de ter lido alguns livros do Padre Zezinho e muitos livros de conteúdo vocacional, pois queria abraçar a vida religiosa.

Eu já devia estar com uns treze anos quando descobri a Biblioteca do Colégio, porque ela não era aberta aos estudantes. Funcionava apenas para as internas. Quando acabou o regime de internato a Diretora abriu para todos os alunos pesquisarem lá. Mas não havia como pegar livros emprestados. Era preciso ler na própria Biblioteca. Foi aí que eu comecei a fugir de algumas aulas para ficar lendo. Comecei pelas aulas de Educação Física, depois comecei a fugir também das aulas de Educação Moral e Cívica. No final do Curso Magistério já estava fugindo até das aulas de Português. Isso quase me custou uma reprovação.

Foi no Colégio que eu li José de Alencar e Machado de Assis. Lembro até hoje como fiquei aterrada quando ouvi Bentinho dizer que Capitu o tinha traído com Escobar, coisa que até então nem desconfiava. Lembro dos “perfis de mulher” traçados por Alencar. Mulheres fortes e corajosas que enfrentavam a sociedade sem medo. Só muito mais tarde, nas aulas de Literatura da Professora Vânia Alvarez, é que fui entender o que era ser mulher no século dezenove. Não sei quantas lágrimas eu derramei lendo “Amor de Perdição”. Não sabia se eu lia ou se eu chorava. Não tenho vergonha de contar essas coisas porque eu era ainda adolescente. “Não entendia como a vida funcionava”.

Eu gostava muito de ler a Bíblia. Muito mesmo. Os Evangelhos eram os meus livros preferidos. Especialmente o de João. Ficava terrivelmente impressionada com o Apocalipse, mas na Paróquia havia o Padre Pedro que me orientava e me ensinava com paciência. Os instrutores do curso de Crisma também foram amigos para muitos anos de esclarecimentos. Hoje eu prefiro o Livro dos Cânticos. Tem mais a ver comigo. E também já não leio mais a Bíblia.

Uma ferramenta especial para minha vida leitora foram as músicas dos anos oitenta. Eu ouvia Cazuza e, principalmente, Legião Urbana. Paralamas fazia muito sucesso nas festinhas em que a gente ia. Também não posso esquecer dos Titãs. Penso nos jovens de hoje e sinto pena deles porque eles não têm essa referência musical que a minha geração teve. Eles são frutos da geração Tchan. Outros mais jovens ainda, como os meus filhos não têm nada em que se agarrar, a não ser o hip hop. Mas isso não é bom porque outro dia estava ouvindo uma canção desse ritmo e o intérprete cantava que “ladrão não dá vacilo”.

Pelas cidades onde passei havia um movimento regionalista e muito resistente que deliberava atitudes em relação à cultura paraense. Aprendi a batida do Carimbó e aprendi a contar histórias com o corpo através da dança.

Naquela época o Grupo de Jovens cuidava da missa aos domingos e eu me reunia com uma equipe para escolher os cantos e algumas leituras para serem feitas durante a missa. Quando era uma ocasião especial (aniversário, casamento...) Padre Pedro dava inteira liberdade para que o grupo escolhesse o que fosse mais adequado. Algumas vezes a celebração era transferida para a Praça da Matriz, o que dava muito mais emoção.

Eram muitos jovens e alguns eram meus amigos. Havia um grupo de meninas que fazia Magistério também. As professoras do Colégio sempre foram as freiras ou algum professor que havia estudado no colégio. Confesso que imaginei muitas vezes que permaneceria no Colégio, se não fosse como irmã de caridade seria como professora, por toda a minha vida. Não sei o que houve. De repente apareceram três professores diferentes no Colégio: Nicolau, Leise e Zanete. E eles apresentaram para a turma as obras de Paulo Freire. Até então eu, com minha indiscutível competência leitora, achava sinceramente que sabia das coisas. Não entendi uma palavra do livro que o professor mandou ler. Fui correndo pedir pra ele trocar o assunto do seminário. Mas ele não trocou. O trabalho saiu sofrível. Mas eu não desisti. Eu não desisto nunca. Os trabalhos continuaram a chegar e eu continuei a insistir. Não foi fácil, mas eu já estava adorando Paulo Freire.

E continuei a ler mesmo depois que o curso acabou e que os professores deixaram o Colégio. Eles eram muito revolucionários para aquele ensino tradicional. Aquele grupo de amigas que se reunia para fazer os trabalhos sobre Paulo Freire e suas idéias revolucionárias também acabou. Cada uma tomou um rumo diferente e nunca mais a gente se encontrou.

Quando passou essa fase veio uma outra, muito complicada. Foi a fase de tentar compreender diagnósticos, interpretar resultados de exames e entender nomes que eram cada vez mais complicados. Também passei a conhecer os nomes genéricos dos medicamentos antes mesmo de isso se tornar lei. E vivia em meio a procedimentos como implantação de catéteres, confecção de FAV e mais um mundo de coisas que eu lia como sofrimento e os médicos denominavam sobrevida. Um dia a médica nefrologista deu um laudo para meu marido cujo diagnóstico continha a palavra “terminal”. Que rebuliço causou aquela palavra colocada ali com um sentido e compreendida por mim e por minha família de um outro jeito. Esclarecidas as dúvidas, veio um outro diagnóstico ainda mais avassalador: anti hcv positivo. Eram os anticorpos da hepatite c. Para mim aquilo soou como uma sentença de morte porque já tinha um laudo de glomerulonefrite (que causou a insuficiência renal crônica) e agora mais uma complicação. Foram transfusões sanguíneas que salvaram quando foi preciso, mas que agora iriam matar meu marido porque envenenaram o sangue dele com o vírus da hepatite c.

As informações precisavam ser processadas com rapidez porque logo chegavam outras que precisavam ser também absorvidas para se tomar as decisões e as providências necessárias. Então descobri novos procedimentos e novas palavras. Palavras soltas que formavam uma trama que me enredava cada vez mais. As palavras tinham vida e tomavam conta de mim porque eu não as convidava para entrarem no meu texto. Eu queria escrever outra história, mas elas não me deixavam. Foi preciso aprender a conviver com elas e deixar que elas tivessem trânsito livre, já que eu não podia impedi-las de participar. Até hoje elas insistem em permanecer e se fazerem novas ou mesmo velhas conhecidas que querem me impedir de ser feliz, mas eu já não tenho medo delas.

Antes de entrar na graduação eu fui trabalhar em uma escola de Educação Ambiental. Todos os dias eu ouvia o nome de Vygotsky. Aprendi a ler como os pedagogos só para saber que língua era aquela, tão estranha, que eles falavam. Acabei por perceber que a maioria deles só queria intimidar. Falavam de coisas que nem eles mesmos sabiam o que significavam. E usavam de um discurso só pra fazer exatamente o contrário do que ensinava Paulo Freire e outros educadores que acatavam o conceito de educação libertadora. Praticavam sem piedade a educação bancária, principalmente com os próprios colegas de Magistério.

Ultimamente tenho descoberto muitos Pedagogos que não são assim. Um deles é a Supervisora da Escola onde trabalho. Muito competente. Aprendi com ela qual é o verdadeiro trabalho de um supervisor. Infelizmente ainda falta muito que discutir (ou felizmente) porque a Prefeitura ainda não disponibiliza um horário para reunião semanal, estudo ou discussão permanente sobre o processo de construção do conhecimento. Se fosse assim, sei que a Supervisora da Escola colaboraria muito mais com o trabalho de todos os professores.

Nos últimos dois anos confesso que não tenho lido muito. Apenas tenho estudado para concursos públicos. Foi assim que consegui passar em Esmeraldas. Também procuro muito a Biblioteca da escola onde trabalho, no entanto os livros são voltados para o público infanto-juvenil. Leio, mas considero uma leitura muito fraca.

Nem sempre fui feliz em minhas experiências de leitura. Quando estava na graduação tive a oportunidade de ler Memorial do Convento, de Saramago. Acontece que eu não consegui ler. Não entendia nada e larguei pra lá. Antes ainda, tentei ler Os Sertões, de Euclides da Cunha. Não consegui também, mas agora já estou redimida porque em 2007 eu consegui. E adorei. Devo confessar que nunca li Guimarães Rosa, mas estou me preparando para ler. Foi mesmo pura falta de oportunidade. Espero ler ainda esse ano.

Gosto de poesia. Uma coisa que foi a professora Vânia quem me ensinou. Quintana, Drummond, Pessoa. Mas não sou profunda conhecedora. Conheço aquilo que todos conhecem, talvez um pouquinho menos. Quando estava no Pará adorava ler as poesias de Rui Barata. Admiro muito o trabalho de um grupo chamado “Arraial do Pavulagem”, um grupo que canta Boi.

Em Minas Gerais ainda me sinto um peixe fora d’água. Nunca sei ônqueutô, pronqueuvô. Andar em Belo Horizonte é sempre um tormento, parece até que eu não sei ler. É que eu não compreendo a geografia da cidade. São seis anos já, mas ainda não aprendi. Penso, às vezes, que não vou aprender nunca.

Apesar de ser uma leitora muito competente, sinto que falta muito pra ler. E penso que agora, enquanto estou aqui produzindo este pequeno texto, há muito conhecimento sendo construído, gerado, gestado, e muito me dói saber que, talvez, não tenha acesso a ele. E que tanto conhecimento já foi produzido, gerado, gestado e eu não tive acesso a ele.

Uma coisa que me incomoda muito é que os meus colegas de Magistério também não leem. E alguns ainda confessam que não gostam de ler. Não sei como é possível ser professor ou qualquer outra coisa na vida sem ler. Diante disso não é de se espantar que os estudantes também não gostem de ler. Mas isso também me incomoda muito. As vezes sou mal vista na escola porque levo livros para os alunos lerem, principalmente na turmas do sexto ano. Pior: as vezes eu procuro contar histórias para eles. “Onde já viu ler na escola para os alunos. Isso só pode ser embromação”.

Meus filhos não gostam de ler. Mas falta de exemplo garanto que não é. Todas as horas do dia tenho alguma coisa para ler nas mãos. Quando vou a algum lugar (banco, shopping, centros comerciais, lojas da CEMIG) e encontro jornaizinhos, informativos, revistinhas, propagandas, saio catando. Um dos meus preferidos é o Manuelzão. Levo esse material pra casa, estudo com cuidado e, na primeira oportunidade, utilizo para dar aula. Minha filha Victória compartilha comigo, de vez em quando, alguma experiência interessante de leitura. Meu filho não gosta das aulas de Português e muito menos de ler. Nunca gostou. Mas vive dizendo que gosta de Química. Que vida cruel.

3 comentários:

  1. Parabéns! Excelente texto. Já virei sua fã. Só não se esqueça de que vai ter que me ensinar o carimbó.
    Abraços,
    Cida.

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  2. Oi, Sílvia, minha colega!
    Que pena que a gente só vai se encontrar no final de agosto. Você viu que aqui na cidade de Caetanópolis vai haver um festival maravilhoso?
    É o Festival Clara Nunes. Venha para cá. A gente faz um festão, como dizem os mineiros.
    Abraços,
    Cida.

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  3. Silvia,
    Eu aprendo "fuçando" e ainda "apanho" muito, demoro horas, às vezes. Sou uma ex-analfabeta tecnológica, lembra? Não se preocupe em encher seu blog de fotos ou outras coisas, pois os textos que escreve são a sua marca. Eu por exemplo, já me acostumei e fico procurando o que vc escreveu de novidade.
    Abraços sete-lagoanos e caetanopolitanos.

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