Amigos Conquistados

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Perfil

O texto abaixo "ganhou" nota cinco (de oito) ao ser apresentado como memorial em uma atividade de renomada Universidade Federal. A pessoa responsável por avaliá-lo, em junho de 2010, considerou-o prolixo e com uma linguagem excessivamente coloquial, pouco adequada a um trabalho da relevância de tal Universidade. Meu objetivo ao construir esse texto foi passar muitas coisas a limpo e me dar a oportunidade de começar de novo. Na verdade produzir esse texto foi uma oportunidade fascinante de começar de novo.

Como todos sabem, sou a humildade em pessoa (kkkkkkkkkkkkk). Resolvi dar uma olhadinha nesse texto e ver se essa pessoa tem mesmo razão. Caso alguém concorde com a profissional que me avaliou, mande-me sugestões. Adorarei receber seus comentários.


Meu nome é Sílvia Suely Amaral de Souza. Em casa me chamam de Bia. Na escola meu nome é Sílvia mesmo. Nasci em Belém, no Pará. Nasci em maio, no dia dez. Considero que ter nascido em maio, sob o signo das águas paraenses, foi um presente poeticamente especial para a minha trajetória na Terra. Sou a filha mais velha de uma família de seis filhos, o pai e a mãe. Quando eu tinha oito anos o meu irmão caçula nasceu. Ele era o único filho homem. Naquele tempo eu achava muito ruim ser a filha mais velha. Agora eu me considero uma pessoa de muita sorte, por ter nascido antes das minhas irmãs.

Moro aqui em Minas Gerais desde 2003. Quando cheguei me estabeleci com minha família no município de Contagem, em uma região tratada pela administração municipal como zona rural, transformada posteriormente em área de preservação permanente por conta de uma barragem que abastece os municípios de Betim, Belo Horizonte e Contagem. Tal barragem forma a Lagoa Várzea das Flores.

Casei em 1991 e, nesses anos de casamento, tenho feito muitos sacrifícios para manter meu marido com uma sobrevida interessante. Casei no mês de fevereiro e, naquele mesmo ano, em dezembro, nasceu meu primeiro filho: o Chrystian. Antes mesmo de o Chrystian completar o primeiro ano de vida eu descobri que o meu marido tinha desenvolvido insuficiência renal crônica. Foi um choque, principalmente porque eu não sabia que doença era aquela. Só sabia duas coisas: que era muito grave e que não havia tratamento para ela em Belém. Era 1992 e parti com meu marido, dois anos mais velho que eu, para Belo Horizonte. Foi muito triste ter que deixar Belém naquela época.

Estive por dois anos acompanhando o meu marido em Belo Horizonte, na hemodiálise, nas transfusões de sangue, naquele sofrimento terrível e na saudade de casa, da família, de tudo. É por isso que esse assunto de terra, referência de lugar de nascimento, mexe tanto comigo. Foi muito duro, principalmente porque quando saí de Belém o meu cunhado veio para doar o rim (o transplante era a única forma de amenizar o sofrimento do Carlinhos, meu marido) para o irmão, mas, no meio daquele turbilhão, meu cunhado desistiu e voltou para Belém. Naquela época compreendi o verdadeiro significado da palavra desespero e, num ato de amor, desespero e saudade, doei meu rim para o meu marido.

No final de 2004, com o Brasil pentacampeão, voltei pra casa e, finalmente fui cuidar da vida. Eu achava sinceramente que aqueles últimos três anos não tinham sido vida. Aquela experiência tinha sido traumatizante e eu queria mesmo era esquecê-la. Deixei a parte continental de Belém e fui morar na Ilha de Paquetá. Naquela época eu tinha o Magistério e comecei a trabalhar como voluntária em uma maravilhosa comunidade ribeirinha que se formou ao longo de um igarapé chamado Jamaci. Mais uma vez estava sob a regência das águas.

O Chrystian não gostava de morar lá porque não tinha energia elétrica. O Carlinho, devido às limitações impostas pelos medicamentos imunossupressores, passava uns dias na ilha, uns dias em casa e outros em Belo Horizonte, no controle do Hospital de Clínicas.

Posso dizer que aprendi a ser uma pessoa mais integrada com o ciclo da Terra, das águas e das pessoas naquela comunidade. Materialmente era uma comunidade muito pobre, sem saúde, sem escola, sem trabalho. Fiz uma ponte entre aquelas pessoas e o mundo porque fui buscar condições para que aquela comunidade fosse posta no mapa. Mas tudo o que eles me ensinaram e a oportunidade que eles me deram de aprender, de conhecer, de valorizar a minha cultura eu nunca poderei retribuir. Posso garantir que ganhei muito e saí de lá como uma pessoa muito melhor do que entrei.

Morei naquela comunidade durante quatro anos e naquele momento tão especial da minha vida nasceu minha filha Victória. Considero meu filho como um presente, mesmo porque ele nasceu bem perto do Natal, mas minha filha foi uma bela conquista. Ela nasceu em abril de 1997.

A Victória era ainda um bebê quando eu passei no vestibular. Quando eu fui para o Jamaci, fui porque eu queria esquecer uma vida muito tumultuada em Belo Horizonte. Depois de um ano que eu estava na ilha, fui procurada por uma fundação de referência em Educação Ambiental, a Escola Bosque. A Escola Bosque queria me contratar para trabalhar em uma escola na ilha. Eu já trabalhava na comunidade voluntariamente, então aceitei.

Participei de muitas discussões sobre educação naquela época e meus colegas me incentivaram a prestar concurso para o vestibular, por causa da LDB. Eles me disseram que, se eu não tivesse nível superior, eu não poderia mais dar aulas. Entrei em pânico. Fiquei mesmo desesperada porque eu acreditava que não tinha nenhuma chance de entrar em uma Universidade. E ficava arquitetando diversas formas de fazer um curso pré-vestibular na parte continental de Belém. Ninguém que more em terra firme pode imaginar que eu estava tentando fazer uma coisa praticamente impossível: estudar para o vestibular, passar no vestibular e cursar uma universidade, morando na Ilha de Paquetá e ainda mais no Igarapé Jamaci. Só eu mesma pra pensar em uma coisa daquela. Mas, para mim, era uma questão de vida ou morte.

Para saber do que eu estava tratando, fiz minha inscrição no vestibular da Federal do Pará. Já que era só pra ver e não pra comer, fiz minha inscrição no curso de Letras que, devo confessar, eu nem sabia do que se tratava. Depois que eu estivesse preparada eu faria vestibular pra História. Minha mãe queria que eu fizesse pra Geografia.

Eu já passei muita coisa nessa minha vida e, se já tinha sido um choque passar na primeira fase do vestibular da Federal, imagina só passar na segunda em 84º lugar, no curso de Letras/Licenciatura. Depois de tudo foi uma grande conquista. Achei que merecia. Meu pai, minha mãe e meus irmãos comemoraram muito. O primeiro ovo quem quebrou na minha cabeça foi a Victória. Passar no vestibular e entrar pra Federal é motivo de muito orgulho e comemoração. Meu marido e meu filho também estavam comigo naquele momento tão especial da minha vida.

Naquele mesmo ano (1998) precisei deixar a ilha. Fiz uma reunião e comuniquei minha decisão aos meus amigos ribeirinhos. Fiz uma promessa que jamais pude cumprir, até hoje: “Quando terminasse o curso eu voltaria pra devolver pra eles pelo menos uma parte do que eles me deram.”. Eles me agradeceram por tudo o que eu fiz e eu disse a eles que eu tinha muito mais a agradecer porque eu devia a eles tudo o que eu seria dali pra frente. A convivência com aquele povo curou minhas mágoas e me fez uma pessoa mais leve e mais tranquila para enfrentar as dificuldades. A vida não seria mais a mesma. Nem eu era mais a mesma pessoa, depois de ter vivido ali tantos anos. E não sou.

Fiquei mais um ano trabalhando em uma outra ilha, Caratateua (Outeiro). Maior e com uma ponte que a ligava ao continente. Lá ficava a sede da Escola Bosque. Foi lá que eu ouvi pela primeira vez os nomes de Vygotski, Luria e Backthin. E ficava imaginando que língua estranha era aquela que o povo falava. Todos os professores da Escola Bosque tinham nível superior, exceto eu e o meu amigo Batista. E tinha uma prima do Batista, a Regina que também tinha Magistério. A imensa maioria era formada em Pedagogia. Meu péssimo relacionamento com os Pedagogos começou naquela época.

No fim daquele ano acabou o meu contrato com a Escola Bosque. Deixei definitivamente minha vida insular. Voltei pra minha casa, na Belém Continental. O Campus da Universidade Federal do Pará fica às margens do Rio Pará e isso dava pra enganar a saudade que eu tinha da vida na ilha. Mas eu precisava mesmo continuar minha vida e fiz um concurso público pra uma pequena cidade do interior do Pará.

Fui aprovada e antes de tomar posse me vi grávida de minha terceira filha. Era o ano 2000. Quando a Gabrielle nasceu aconteceu uma tragédia. O rim transplantado do Carlinho começou um processo de rejeição avassalador. Eu já tinha transferido minha matrícula do campus de Belém para o Campus do Baixo Tocantins, que ficava em Abaetetuba: “Terra de homens bravos e trabalhadores”. Os homens lá eram bravos mesmo, no sentido mais selvagem da palavra. Alguns poucos, como certos amigos, nem eram tão bravos assim.

Aqueles dias foram muito difíceis. Já estava mesmo acostumada a ser uma forasteira e a ser tratada como tal. O povo não recebeu bem aqueles aprovados no concurso. Na Universidade também não foi diferente. Eu não tinha turma, não tinha padrinhos políticos. Fui perseguida politicamente, fui transferida várias vezes de uma escola pra outra e, todos os dias prometia que, quando acabasse o curso, não só tiraria o pó das sandálias como jogaria fora as próprias sandálias.

O Chrystian e a Victória ficaram comigo até quando deu. O Carlinhos piorou muito. Passou dois meses em Belo Horizonte e, quando retornou a Belém, passou mais 30 dias internado. Ao voltar para Abaetetuba, após o término da licença-maternidade, meus três filhos ficaram em Belém. Se eu ainda não disse até agora, posso garantir que mantive minha integridade mental graças à minha mãe, que cuidou dos meus filhos em todas as longas horas em que eu não estive por perto.

Com a primeira crise de rejeição eu sabia que o tempo do Carlinho era pouco. Muitos transplantados não resistem a esse processo. Entrei em pânico. O Carlinho é tudo pra mim. E chorava muito porque não sabia até quando ele iria suportar. Muitos amigos já tinham partido em meio ao processo de rejeição. E eu precisava trabalhar e concluir o curso.

Em 2002 o meu marido voltou pra diálise. E eu corria contra o tempo para me formar. Queria e precisava voltar pra Minas Gerais porque o tratamento era muito melhor e também tentar outro transplante. Eu passei uns dias terríveis naquela época. Cheguei a fazer doze disciplinas em apenas um semestre. Além de trabalhar com alfabetização de crianças. Minha vida parecia uma máquina de lavar em processo de centrifugação constante. Não sei, sinceramente como consegui.

Meus filhos e o Carlinhos ficavam em Belém e eu ficava em Abaetetuba. Eu vinha em casa aos finais de semana. Cheguei a fazer estágio com o Carlinho internado em CTI. Hoje eu penso nisso como se fosse a história de uma outra pessoa. E não a minha própria. Eu assinei a ata de formatura na secretaria do Campus no dia 02 de setembro de 2003. Estavam lá o meu pai, a Vi, o meu amigo Batista, a secretária e o coordenador do Campus, o Coordenador do Curso de Letras e mais dois ou três colegas das turmas onde eu tinha feito disciplinas: Letras 97, 99 e 2000.

No dia 03 de setembro de 2003 eu deixei Belém. Meu objetivo era o de estabilizar o Carlinho. Já em Belo Horizonte fui ao Hospital São Francisco para uma avaliação do caso dele e recebi mais uma notícia daquelas: não era possível um segundo transplante. Mais lágrimas. Meu Deus! Que vida! Naquele ano, em dezembro, eu trouxe a Victória. Os outros não quiseram vir. Ficaram.

Em 2005 consegui reunir a família aqui. Menos a Gabrielle, que sempre ficou morando com minha mãe. Em 2006 minha mãe veio fazer uma visita. Trouxe a Gabrielle e, quando foi embora acabou levando também a Vic. Parecia até que ela estava adivinhando. No final daquele ano meu irmão Silvio apresentou um quadro de pneumonia que causou uma infecção generalizada. E ainda ele, que era saudável, jogava futebol, trabalhava e estava de casamento marcado, não resistiu. Viajei às pressas para Belém. Tão somente para me despedir porque nada havia que eu pudesse fazer por ele. E passei dois meses lá. Já sem sentir pertencer a lugar algum.

Mais uma vez deixei meus filhos em Belém e voltei pra Minas, afinal o Carlinhos não poderia mesmo viver lá. Mesmo sem esperança de transplante a vida dele aqui é muito interessante.

Eu tinha esperanças de voltar pra casa. Hoje não tenho mais. Hoje tenho o Chrystian e a Victória, que voltaram para minha convivência. Ainda estou trabalhando para ter o merecimento de trazer para junto de mim minha filha caçula, agora com oito, quase nove anos. Acredito em tudo o que faço. Tenho verdadeira paixão pela vida e procuro viver sem culpas. Procuro acreditar que tenho feito o melhor e não tenho medo do julgamento das pessoas. Se fosse preciso eu faria tudo de novo. Quase tudo.

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL

Estudei, desde a 4.ª série do Primeiro Grau, no Colégio Nossa Senhora da Anunciação, localizado na Grande Belém. Era um espaço maravilhoso e fui criada naquela atmosfera religiosa, sempre muito próxima dos rituais e dos ensinamentos da Igreja Mãe. Na cidade onde eu morava não havia muita escolha de escola e foi uma sorte muito grande ter conseguido uma vaga naquele colégio. Uma não, seis vagas para os seis irmãos.

Quando terminei o 1º grau fiquei sem rumo. Não sabia o que fazer. Então fui que fui ficando e comecei a cursar o Magistério. Minha família é muito humilde e minha mãe trabalhava como servente no Colégio. A diretora tinha conseguido um contrato e mamãe prestava serviço como servidora pública contratada. Uma quantidade gigantesca de salas pra limpar e ainda as outras dependências do Colégio como terraços, diretoria, biblioteca e sala dos professores. O Magistério no Colégio era particular e meus pais não tinham condições de pagar para eu estudar.

Assim, aos quatorze anos fui parar na sala de aula como estagiária. Tal bolsa de estágio custeou meus primeiros três meses no Magistério. Logo em seguida a diretora do Colégio conseguiu um convênio com o Estado e não foi mais preciso pagar mensalidades às freiras.Continuei estudando no colégio e fui chamada pelo Estado como bolsista da FBESP (Fundação do Bem Estar Social do Pará). Já tinha completado 15 anos e fui trabalhar em um programa de creches domiciliares como monitora. Logo em seguida o então Governador, famosíssimo Jader Barbalho, acabou com o programa e fui remanejada para o município de Marituba, onde desenvolvi atividades com menores da Colônia do Prata, uma colônia para portadores de Hanseníase.

Acabou meu contrato e deixei a FBESP. Terminei o Magistério e casei e, com a vida tão tumultuada daquele jeito, apesar de ter o maior interesse em acompanhar a vida política no país, não tinha tempo porque a vida do Carlinho estava sempre por um fio. Sempre.

Como um capítulo muito importante de minha vida profissional, considero a Catequese. Trabalhei alguns anos na Paróquia de Nossa Senhora das Graças como catequista. Devido a um problema muito sério no dia do meu casamento não pude casar na Igreja. Acabei deixando de ser católica por causa disso. Já que não tinha recebido o sacramento do matrimônio estava vivendo em pecado e não podia receber a comunhão. É preciso dizer que, ao deixar a Igreja Católica, passei também a não acreditar em Deus. Não acreditava em nada, só em mim e na minha capacidade de resolver meus problemas.

Meu curso de Magistério foi bom. Naqueles anos ouvia muito falar em Paulo Freire e aquelas frases soltas sobre educação faziam muito sentido pra mim. Em 1990 concluí o Magistério e viajei com meu marido para a cidade dele. Naquela época era muito difícil encontrar um professor que tivesse um “diploma” e a diretora da escola daquele povoado, sabendo que eu era professora, foi me procurar e convidou-me para trabalhar com ela. Naquela época o salário que a Prefeitura pagava equivaleria, hoje, a uns R$ 30,00. É desse salário que eu lembro como sendo o meu primeiro salário como professora. Lá eu tinha duas turmas de Alfabetização. É costume no Pará dar aos professores mais jovens e menos experientes as turmas de alfabetização. Hoje reclama-se do piso...

A diretora da escola estava tentando um contrato com o Estado pra mim quando o Carlinho começou a apresentar os primeiros sintomas da IRC e precisei deixar Salinópolis às pressas para cuidar dele. Se em Belém já era praticamente impossível, imagina em um lugar como Salinópolis, em um povoado distante chamado Santo Antonio de Urindeua.

Entrei na Universidade Federal do Pará em 1998. Fiz o curso de Letras, mas queria fazer História. Fui me arrastando entre os níveis de Linguística e Língua Portuguesa até chegar às disciplinas de Literatura Brasileira, com a Professora Vânia Alvarez. Só então as coisas começaram a fazer sentido. Apesar de ter passado no vestibular em Belém, concluí o Curso no Campus Universitário do Baixo Tocantins, em Abaetetuba. Considero importante dizer que não tenho habilitação em Língua Inglesa. Iniciei o Curso de Alemão, mas devido a minha trajetória pessoal de grande turbulência quase nem consigo terminar o Português, que dirá o Alemão.

Em 1997 trabalhei na Ilha com uma turma multisseriada. Pela manhã eram atendidas crianças de 7, 8 e 9 anos e a tarde atendia os adolescentes de 10, 11, 12, 13 e 14 anos. Quando a Escola Bosque assumiu a Escola, deixou a mesma divisão e chamou de Primeiro e Segundo Ciclos. Quando deixei a Ilha de Paquetá e fui para Outeiro tinha novamente duas turmas: duas turmas de ciclo básico I (1ª série).

No final de 2001 eu realizei um curso de formação continuada relacionado à Alfabetização de Crianças. Nunca consegui o comprovante de tal curso. O curso foi de 120 horas, lá na terra dos homens valentes e trabalhadores, Abaetetuba.

Em 2000 fui professora de uma turma de alfabetização porque tinha recentemente passado no concurso da prefeitura de Abaetetuba. Em 2001 trabalhei com uma turma de EJA, mas, por motivos de perseguição política, fui transferida para uma turma de 2ª série na mesma prefeitura. Foi a única vez que me trabalhei com uma turma de crianças que já sabiam ler.

Em 2002 foi a mesma história: dessa vez eu é que pedi transferência e, como era novata na escola, tive que pegar a Alfabetização. Em 2003 não estive em sala de aula. Fiquei na escola até o final de agosto e a diretora, que sabia do problema grave de saúde do meu marido, recomendou que eu ficasse entre a sala de leitura e a brinquedoteca, que era um pequeno espaço alocado na escola com alguns livros e brinquedos para eu trabalhar com as crianças. Naqueles dias eu fui a professora mais querida da escola

Eu nunca concordei com essa idéia de que ser professor de crianças pequenas fosse um castigo ou uma humilhação. Enquanto os outros achavam que estavam me diminuindo profissionalmente eu aceitava as turmas sem questionar porque adorava alfabetizar. Ensinei muitos meninos e meninas a ler e a escrever e me orgulho disso. Até hoje paro na porta das salas de alfabetização e fico lembrando das rodinhas de conversa, de sentar no chão, de trabalhar com massa de modelar, se ensinar as primeiras letras, a escrever o nome. Lembro de contar histórias e até das vozes delicadas na hora de cantar músicas de roda, toadas de boi e parlendas.

Hoje trabalho na Escola Municipal João José dos Passos. Com o ensino de Língua Materna nos Anos Finais do Ensino Fundamental. Com a escola recém inaugurada, as turmas não têm mais que 30 alunos. Eu considero isso uma enorme conquista para oferecer um atendimento de maior qualidade para a comunidade escolar.

Eu queria ser professora de História. Sério. Quando as aulas começaram na Universidade, no curso de Letras, achava que uma hora as coisas iriam melhorar. Mas elas não melhoravam. E eu corria como o diabo corre da cruz das aulas de Linguística. Comecei a ter certeza de meu erro quando começaram as aulas de Latim. Meu Deus! Latim. E eu pensava todos os dias no que eu estava fazendo ali. Eu não desisti do curso porque minha família fazia muita pressão. Eu era a primeira pessoa da família a entrar em uma Universidade Pública. Imagina só desperdiçar uma oportunidade daquelas. A maioria das pessoas que estudavam lá achava a mesma coisa que eu. A diferença é que eles não estavam estudando para serem professores. Estavam lá para ter um diploma. Eu queria ser professora, mas não de Português.

A cada disciplina meu desespero e minha insatisfação aumentavam. Que língua era aquela, eu pensava, que aqueles loucos tentavam me enfiar goela abaixo? Que símbolos estranhos que eu sabia que nunca iria aprender?

Um dia encontrei a Professora Vânia Alvarez. Eu já estava em Abaetetuba e ela foi ministrar as disciplinas de Literatura Brasileira no campus. Então eu compreendi que podia ser como aquela mulher. Podia sim, na área de Língua Portuguesa me realizar profissionalmente. Por muitos anos deixei meu diploma guardado e, desde o ano passado, quando passei no concurso público da cidade aonde trabalho, venho plantando as sementes dessa realização profissional que um dia sonhei.

No último semestre da Graduação cursei a disciplina de Sociolinguística. Mas já era tarde. O estrago já estava feito. Eu desejava muito ser professora, mas sabia que não estava preparada para ensinar aquilo que tinha aprendido nos oito níveis de Língua Portuguesa ou mesmo nos três níveis de Linguística. Eu achava que a Linguística serviria para mim caso eu quisesse ser perita da Polícia Civil.

Passei anos fora da escola, tentando me equilibrar, organizar minha vida. Mas as saudades da sala de aula eram quase insuportáveis. Eu me sentia menor que os outros, não só pela minha pouca estatura, mas porque eu não produzia nada. Quando saiu o edital do concurso público para Esmeraldas eu não queria fazer. Uma amiga me deu muita força. Quando eu comentei com ela que queria fazer o concurso pra PEB I ela foi radicalmente contra. Não permitiu de forma alguma. Disse-me que eu teria que assumir o meu diploma, ficou no meu pé e ainda organizou um tanto de material pra eu estudar. Agradeço muito a ela, que me deu essa força na hora certa, em que eu estava realmente precisando.

Do Gestar II eu espero ferramentas que eu possa ter para responder às minhas dúvidas. Eu preciso saber se estou no caminho certo, se tenho que mudar completamente a minha rota ou se pelo menos eu tenho um lugar para ir. Tenho as manhãs livres para estudar. Eu sinto muita dificuldade em ter acesso a artigos, livros e materiais da minha área.e não preciso comentar sobre o salário que recebo como professora e o quanto de milagres eu preciso fazer com ele. A sede da prefeitura da cidade em que trabalho é longe, mesmo assim acredito que a Biblioteca Municipal não tenha ainda condições de atender aos professores a respeito de material específico sobre educação. E a Biblioteca Pública de Belo Horizonte é muito longe para visitar, pesquisar e fazer empréstimo de livros.

2 comentários:

  1. Eta mulher porreta!
    Obrigada por compartilhar conosco essa emocionante história de vida. Lutas constantes, desafios diversos nos são impostos a cada dia e você,com essa sua força vai vencendo, conquistando e conseguirá tudo o que almeja. Parabéns pelo texto e por ser assim, mulher batalhadora, professora, mãe e esposa apaixonada.
    Um grande abraço,
    Cida.

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  2. Olá, Silvia!
    Parabéns pela sua história de lutas e glórias!
    Ganhei de minha filha Manu o livro" mulheres de aço e de flores",quando li sua história achei que ela merecia um título assim.Fiquei tocada.Eu também tenho uma filha Vitória e uma Gabriella e,como você,também conheci a dor de conviver com a insuficiência renal de minha mãe que perdi há um ano.Tive que renunciar a muitas coisas para cuidar dela,mas não me arrependo de ter combatido o bom combate. Isso aumentou a minha fé e mudou alguns conceitos. A sua história de luta é maior do que a minha,reconheço.
    Quero compartilhar com você uma oração que me acompanhou nos momentos mais difíceis:
    "Nada te perturbes.
    Nada te amedrontes.
    Tudo passa, só Deus não muda.
    A paciência tudo alcança.
    A quem tem Deus nada falta.
    Só Deus basta!"
    Abraços!

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